SOCIEDADE // BURCA
Deve-se proibir o uso da burca no espaço público? Quanto a mim, sim. E por três razões: igualdade de género, sociabilidade e segurança
Entendo e concordo que não seja uma prioridade do país. E devo confessar: até hoje, vi uma só mulher de burca na rua. De niqab, vi três ou quatro. Mas como o tema se impôs à sociedade – mesmo que contra o seu ritmo – convém discuti-lo. Se possível, com franqueza e abertura.
Primeiro, deixando claro: o tema foi mal agendado. Com a vulgaridade que o Chega introduziu na vida pública, o tema foi embrulhado numa mistela de chavões xenófobos e fantasmas inexistentes. As ruas de Portugal não estão repletas de burcas, como os meus olhos e os do leitor podem confirmar.
Ainda assim, não me foco no mensageiro – pois os excessos podem ser corrigidos na lei –, mas na mensagem. Deve-se proibir o uso da burca no espaço público? Quanto a mim, sim. E por três razões: igualdade de género, sociabilidade e segurança.
A primeira aparece em ordem e em importância. Uma sociedade liberal rege-se por uma cultura de igualdade formal, perante a lei, mas também substantiva, prática. Nem homem nem mulher podem ser importunados de se vestir como bem entendem. Pois bem: o uso da burca ou do niqab não cabe nestes termos. Por um lado, por sabermos que se trata de uma imposição às mulheres. Por outro, por se tratar de um símbolo opressivo. Na escuridão, está o apagamento da pessoa e, numa sociedade liberal, nenhuma pessoa se apaga por imposição.
A segunda razão diz respeito à sociabilidade. Ter o rosto coberto dificulta a relação com estranhos. Uma sociedade aberta pressupõe uma convivência sã e confortável entre aqueles que a integram. E também se trata de saúde. A solidão de muitos combate-se com pequenos momentos de convivência com estranhos, sobretudo na vida dos idosos e de pessoas com deficiências auditivas. O espaço público é, por excelência, o lugar onde esses momentos se dão.
Por último, o uso de burca no espaço público acarreta, sim, um problema de segurança. Um rosto coberto é uma pessoa impossível de se identificar claramente. E, neste quesito, nada tem a ver o uso de máscaras de hospital, capacetes de mota ou até vestimentas de Carnaval. A lei já permite essas excepções. É possível ter o rosto tapado por motivos de “saúde, profissionais, artísticos e de entretenimento ou publicidade”. Como vê, leitor, motivos religiosos não incluídos, fora em locais de culto.
Mas, para lá da letra da lei, está a filosofia que a orienta. Se o debate sobre o tema se desse há algumas décadas atrás, sucumbiria à tentação do liberalismo irrestrito: venha daí o multiculturalismo. No entanto, hoje temos a vantagem de conhecer a história recente e ter uma marca de água para tomar decisões. O multiculturalismo falhou na Europa: palavras estas, que mais coisa menos coisa, foram ditas por Merkel e Macron. Diversidade não é multiculturalismo: é integração e convivência entre diferentes num espaço comum.
E esse espaço, onde todos se integram, não surge do acaso. Resulta do modo de vida ocidental e liberal, plasmado na lei que decorre da cultura e dos costumes interiorizados na comunidade. Uma sociedade aberta não surge nem se mantém por decreto: é assim pela existência de certos valores e pela sua tradução prática no dia-a-dia. A burca ou o niqab, pelo que simbolizam e pelo impacto visual, são uma afronta directa aos valores de uma sociedade aberta.
Só assim se garante coesão social, e essa é fundamental para a existência de uma democracia liberal. O liberalismo, que tem a consciência individual como princípio fundador, tem por vezes maximizado o princípio da liberdade a um ponto que se tornou contraproducente. O próprio foi desenhado para sociedades em que existe coesão social.
A democracia, para funcionar, pressupõe que, na essência, nos revemos uns nos outros. Precisa de um mínimo denominador comum, e esse resulta de uma delimitação de valores: uns ficam, outros saem. Os últimos, por vezes, têm que sair pela proibição de certas práticas. E neste tema, julgo eu, está um perfeito exemplo disso. É sensato proibir o uso da iliberal e ultramontana burca, pela necessidade dos tais mínimos de convivência sã e digna.
Eu gosto de democracia, e por isso conheço-a. Sei os seus pontos fortes e as pontas soltas. Sei onde o serrote dos que não gostam dela pode ir cortando, até à sua queda. Prefiro manter o serrote à margem.
É em temas como este, que tocam nos alicerces da nossa convivência, que mais me lembro disso.
Expresso
Rui Pedro Gomes
20.10.2025



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A questão resume-se apenas nesta realidade: se um ocidental andar por um país muçulmano com a esposa de mão dada, dar-lhe um beijo, sendo cristão, andar com um terço e uma bíblia na mão, é logo preso, espancado e eventualmente condenado à morte. Porque razão os ocidentais têm de respeitar as leis nos países deles se eles não respeitam as nossas leis, usos e costumes?