SOCIEDADE / EGOÍSMO / ESPANHA
Quinze anos morto, só, atrás de uma porta jamais aberta. Em Madrid, vizinhos julgaram que estava num lar; estava esquecido. Portugal reconhece este retrato: rotinas que lavam as mãos, sistemas que fecham os olhos, instituições tardias e uma sociedade egoísta que se protege do outro em vez de o proteger. Este é tema do Além dos títulos desta semana,
Um idoso encontrado morto em casa, década e meia depois. Espanha hoje; Portugal ontem e, se nada mudarmos, amanhã.
A pergunta é simples e terrível: como é possível? Num país com rede de saúde, serviços sociais e polícias, num bairro com condomínios, centros de saúde, juntas de freguesia e vizinhos, como é que quinze anos passam sem que ninguém estranhe o correio acumulado, a luz que não se acende, o silêncio que não envelhece?
O que se revela, por baixo da rotina bem-comportada, é uma sociedade egoísta: habituada a terceirizar o cuidado, a delegar a atenção no “sistema”, a afastar o incómodo e a proteger o conforto próprio, mesmo quando o preço é a invisibilidade do outro.
Em Portugal, já vimos isto.
Vimos idosos deixados dias e semanas em corredores de hospitais, sem família que os venha buscar e sem plano social que os acompanhe.
Vimos altas “técnicas” que são, na prática, expulsões administrativas para o nada.
Vimos violência disfarçada de impaciência e abandono escondido sob a palavra “autonomia” quando, na verdade, é desamparo. Nada nos garante que não volte a acontecer — porque nada de estrutural foi feito e porque a indiferença egoísta continua a ser tolerada.
O direito à dignidade, à integridade física e moral, à protecção na doença e na velhice não cabe em slogans; exige protocolos obrigatórios de sinalização, integração efetiva entre saúde e acção social, e responsabilidade.
Responsabilidade com nome: Estado, autarquias, instituições particulares de solidariedade social, administrações hospitalares. E também a responsabilidade incómoda: família e vizinhança.
O que falha é sempre o mesmo.
Falha a identificação e o acompanhamento, porque não existe um registo actualizado de pessoas sós em risco, com cruzamento de dados de centros de saúde, segurança social e autarquias; sem mapa, perde-se gente.
Falham protocolos vinculativos: quando um idoso fica internado sem retaguarda, a alta não pode ser um bilhete de saída para o vazio; tem de accionar automaticamente uma resposta social, monitorização domiciliária e apoio jurídico sempre que existam indícios de abandono ou violência.
Falha a vizinhança responsável: não basta achar que o vizinho foi para um lar; é preciso verificar, reportar, bater à porta.
A indiferença também mata.
Isto não é apenas uma tragédia; é um fracasso jurídico e ético. Um sistema que tolera a invisibilidade fabrica autópsias morais. E nós, que escrevemos, legislamos, julgamos e governamos, não podemos aceitar que a solidão seja um destino administrativo.
Não se legisla o amor, mas legisla-se a responsabilidade.
Não se impõe a ternura, mas obriga-se o cuidado. E quando o Estado diz “não tenho meios”, responde-se: não há custo mais caro do que a morte silenciosa.
Um homem ficou quinze anos morto numa casa em Espanha. O tempo passou, o mundo mudou e ele não.
A única pergunta que importa é se se tolera que isto aconteça aqui.
Não pode ser tolerado.
E não haverá descanso enquanto a porta que separa a sociedade da dignidade não for substituída por uma rede de cuidado e responsabilidade que a ligue ao dever essencial: ninguém fica para trás.
Expresso
João Massano
16.10.2025



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